Cascavel: cobra venenosa que ocorre entre o México e a Argentina.
Eduardo de Paula
Me engana que eu gosto. Quer errar? Siga a multidão ou, em certos casos e com o devido respeito, arrisque com algum especialista de sua confiança. Sempre foi assim, desde o começo dos tempos. As regras são mais ou menos as mesmas, como também as consequências.
Vai aqui o relato de uma tragédia que comoveu o povo da cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1838. O Jornal do Commercio (RJ), deu notícias que fazem lembrar uma peça de teatro. As fontes foram o doutores Maia(1) e Reis(2) que testemunharam os fatos e, de alguma forma, neles se envolveram. O presente texto, resumido e adaptado de publicações em diferentes dias, procura ser fiel ao conteúdo dos originais.
CENA I – Edição de 27 de agosto de 1838:
“Elefantíase dos Gregos, a cobra cascavel — Há uma opinião, comum em várias partes da América, de que a dentada de cobras venenosas, tanto pode matar as pessoas afetadas da Elefantíase dos Gregos – vulgarmente chamada Morfeia ou Mal de São Lázaro –, como também seu veneno é capaz de curá-las do mal que sofrem. A esse respeito, contam muitas histórias de pessoas elefantíacas mordidas pela cobra coral, pela jararaca preguiçosa e pela cascavel, a mais venenosa e temível de todas.
Ainda mais, alguns dizem ter não só escapado da morte, mas também completamente curados da elefantíase por essa mordedura. Aqui nesta corte, existe um indivíduo que, de propósito, teve a coragem de buscar remédio nesse meio tão terrível. Já se fez morder pela cobra coral e pela jararaca preguiçosa. Nas duas vezes, ficou sem sentidos e abandonado, parecendo estar morto.
Mas, depois de 24 horas, voltou a si sem lhe darem remédios. Contudo, se teve a fortuna de escapar, nada teve a sarar. Apesar do fracasso, tal era sua coragem, tal o desejo de se ver livre do mal que o afligia, que resolveu tentar a mordedura da cobra cascavel. Nesse sentido, já mandou vir um réptil e está apenas aguardando sua chegada. Enquanto isso, sempre mostra as feridas produzidas na mão pelas cobras que o morderam.”
Pois bem, a voz popular tantas vezes fora ouvida, que acabou por entusiasmar um especialista* – dito como facultativo(3) – que também resolveu botar suas mãos à obra. — * Provavelmente um farmacêutico.
É o que revela o Jornal do Commercio (27.08.1838):
“O senhor Santos informado das tradições e fatos que ocorrem entre o povo e também do que lera a respeito na Revista Médica Fluminense, entendeu haver na mordedura da cascavel um provável remédio para a Elefantíase dos Gregos. Para tanto, contava com a disposição de alguns doentes do Hospital dos Lázaros, de modo que mandou vir uma dessas cobras, com o intuito de fazer a terrível experiência.
A cobra havia chegado e tudo estava pronto para, no dia 23 do corrente, se efetuar a mordedura. Cerca de vinte facultativos, estudantes da escola médica e mais algumas pessoas, se apresentaram para acompanhar o experimento. O grupo somava cerca de 200 pessoas mas, o senhor Santos, em vez de ganhar ânimo frente à plateia, chegada a hora lhe faltou a coragem. Assim sendo, foi buscar apoio na opinião dos seus colegas.
Diante do impasse, o senhor Santos consultou se deveria ou não ir em frente e foram surgindo diferentes opiniões. O fato é que, cada um se viu transformado em juiz, o que alterou inteiramente o rumo dos acontecimentos. As dúvidas e os receios substituíram a impaciência e os desejos. Alguns deles, antes de dar o voto, foram detalhando seus pontos de vista, de tal maneira que a discussão se transformou numa conferência formal.
Nesse sentido, foram lidos artigos publicados na Revista Médica Fluminense e, também, feitos relatos de fatos já conhecidos pelo senhor Reis, bem como outros ocorridos na Província de Minas, embora nenhum deles presenciado ou garantido por pessoa da arte. A maior parte dos conferencistas, entre eles os doutores Meirelles, Gomes dos Santos, Carvalho, A. Felix Martins e Octaviano, acharam que nem a opinião popular, nem as alegações apresentadas, nem aquilo de que se tenha conhecimento, seriam suficientes para embasar a proposta. Ademais, não viam pouca sustentabilidade a favor dela.
Votaram pois, que não se fizesse a experiência e não se arriscasse a vida de um ou mais homens, sob a fraca esperança de um benefício mui incerto contra um perigo certíssimo. Alguns, entre os doutores, como Pereira Carvalho, Borges Monteiro e De Simoni, não quiseram votar, a favor ou contra. Entre os que votaram a favor, estavam os senhores Penha, Benildo, etc. Outros o fizeram com restrições.
Esse resultado atou as mãos, pouco antes tão livres do senhor Santos que, ao hesitar, foi buscar uma autorização que não precisava. Era sim, muito ousada a experiência mas, se fosse efetuada teria produzido grandes resultados, pois confirmaria ou não a eficácia de um remédio contra a Elefantíase dos Gregos. Infelizmente, o senhor Santos não quis se valer da faculdade ampla que assiste ao gênio empreendedor, que é de se lançar livremente para onde leva sua inspiração. Contrariamente, optou pela senda dos preceitos estabelecidos e dos conselhos de colegas.”
CENA II – Edição de 30 de agosto de 1838:
“Ocorreu no Hospital dos Lázaros uma conferência a respeito da experiência que se queria fazer com a cobra cascavel. Por isso, estamos convencidos que o senhor Santos solicitara, por vontade própria, o apoio dos seus colegas. Agora, somos informados que o administrador e o facultativo do Hospital dos Lázaros informaram que houve o consentimento.
Excelentes nos parece, a esse respeito, as opiniões do senhor doutor Francisco Freire Allemão, o qual, não tendo podido assistir a conferência, assim mesmo nos disse o que pensava. Optaria não pela mordedura, mas pela inoculação do veneno retirado da cobra. Depois, ele seria aplicado com cautela, em etapas e diferentes quantidades.
Entendemos que, se a ciência tivesse que recuar à frente dos perigos e das dificuldades, se o medo sempre estivesse a conter a vontade e a abortar as especulações, muito atrasados ainda estariam os conhecimentos humanos.”
Chegando nesse ponto, a voz da eclética multidão – povo, médicos e imprensa – estavam nitidamente manifestando apoio e dando cobertura ao senhor Santos. Assim fortalecido, dias depois, em 4 de setembro, o especialista foi em frente com seu intento.
CENA III – Edição de 6 de setembro de 1838:
“O senhor Santos optou por prosseguir com a experiência, dando início a ela anteontem, às 11:50 horas da manhã e a executou na sua própria residência, situada na rua do Valongo. Presenciaram o evento os senhores Maia, Costa, A. F. Martins, Tavares, Capistrano e Reis, e mais algumas pessoas.
O paciente foi Marianno José Machado – 30 anos de idade –, natural de Rio Pardo, Província do Rio Grande do Sul, morfético por seis anos e, a quatro, residindo no Hospital dos Lázaros. Desde o início, Marianno denotou a mais heroica coragem. Por isso mesmo, entregou u’a mão aos dentes do réptil com a maior presença de espírito e sangue frio, sem mudar de cor nem tremer. Assim sendo, recebeu a admiração de todos os presentes.
Tão grande ânimo tinha Marianno, que merecia sorte bem feliz. Por parte do réptil, parecia respeitá-lo e honrar o herói que lhe mostravam. Pois sim, durante mais de 2 minutos o doente conservou sua mão dentro da gaiola, sem que a cobra a mordesse. Dava a impressão que o animal sentia certa repugnância ao vê-la. Foi então preciso que o doente pegasse a cobra e a apertasse fortemente, de modo que o ferisse.
Contudo, Marianno não sentiu quando ela lhe deu uma picada na extremidade do metacarpo, entre o mínimo e o anular, mas lhe avisaram os observadores. Quando retirou a mão, já estava um pouco inchada e gotejando sangue, porém sem dor. Os efeitos da mordedura foram se manifestando lentamente, talvez pela própria falta de sensibilidade do paciente.
Lamentavelmente, o resultado foi funesto, com o infeliz falecendo ontem (dia 5), às 11:30 horas da manhã, quase 24 horas depois da picada. Apesar de tudo, votamos louvores à coragem e lágrimas à infelicidade, pedindo aos leitores a suspensão do seu próprio julgamento, até a publicação do artigo que prometemos.”
Desafio à cascavel.
CENA IV – Edição de 11 de setembro de 1838:
“RELATÓRIO (segundo informe dos médicos Maia e Reis).
— A mordedura é feita às 11:30 horas da manhã, do dia 4 de setembro. O ferido não sente a picada, nem a ação imediata do veneno. Fica sabendo que está mordido pelos observadores presentes.
A mão é retirada imediatamente da gaiola e já sai um pouco entumecida, e pingando sangue, mas sem dor. O doente permanece tranquilo; sua respiração está normal e como também o pulso.
- Depois de 5 minutos, tem ligeira sensação de frio na mão; ao meio-dia, ligeira dor na palma da mão, que aumenta em alguns minutos e, aos 17, estende-se ao punho. Aos 20 minutos, a mão entumece consideravelmente; aos 30 minutos, o pulso se apresenta mais volumoso.
- O homem conversa sempre animado e até rindo. Aos 30 minutos, tem sensação de enchimento no trajeto das jugulares; alguma alteração na visão; sensação de formigamento na face. Aos 35 minutos, a sensação de enchimento nas laterais do pescoço e na nuca; a mão continua a aumentar em volume e dor se estende a dois terços do antebraço. Aos 50 minutos, dormência por todo o corpo.
- À 1 hora e 20 minutos, tremor por todo o corpo, perceptível ao toque; à 1 hora e 30 minutos, perturbação sensorial e pulso mais frequente; alguma dificuldade em movimentar os lábios; sonolência; sensação de constrição na garganta; a dor se torna mais intensa estendendo-se por todo o braço: progride a intumescência na mão.
- À 1 hora e 38 minutos, sente frio e cobre-se; à 1 hora e 48 minutos, dor na língua e no rosto, propagando-se para o ventre; na mão, aumento da dor e inchação; sensação de frio nos pés.
- Às 2 horas e 5 minutos, dificuldade na fala; às 2 horas e 25 minutos, dificuldade de engolir; ansiedade; suor pelo peito; às 2 horas e 50 minutos, esmorecimento nos braços; gotejamento de sangue pelo nariz, aumento da ansiedade, inquietação, pulso a 96 batimentos.
- Às 3 horas e 4 minutos, suor generalizado, gemidos involuntários, abatimento; às 3 horas e oito minutos, pulso a 100; às 3 horas e 13 minutos, grandes dores nos braços, inquietação; às 3 horas e 30 minutos, pulso a 98, vermelhidão no rosto, continua o gotejamento de sangue pelo nariz; às 3 horas e 35 minutos, consegue beber, sem dificuldade, água com vinho, sua camisa embebida de suor é trocada; vermelhidão muito intensa em todo o corpo, gotejamento de sangue por umas pústulas nas axilas.
- Às 4 horas, pulso a 100; vermelhidão mais intensa por todo o corpo, tendendo para o escuro, especialmente na extremidade mordida; dores fortes nos membros superiores, que não deixam sossegar o doente, apesar do seu abatimento; constrição na garganta, respiração difícil; as extremidades inferiores e o ventre não aparentam deformação; às 4 horas e 30 minutos, pulso a 104; muito calor em toda a superfície corpórea; salivação.
- Às 5 horas e 30 minutos, pulso estável; torpor; nota-se que a urina tem sido abundante e a saliva espessa, pegajosa e escura, saindo com dificuldade da boca; prostração muscular; gemidos frequentes, resultantes de dores generalizadas no corpo; respiração tranquila; pulso cheio, frequente; pele macia; maior tumefação na mão mordida.
- NOITE – Às 7 horas, sonolência com gemidos. Ao despertar, diz achar-se livre das dores nos braços, mas muito fortes no peito e sente um nó na garganta; nessa ocasião, urina copiosamente; deglutição muito difícil; saliva viscosa e branca; saída de líquido sanguinolento pelo nariz. Dão-lhe a beber água misturada com açúcar e aguardente, mas não consegue engolir.
- Às 8 horas, o suor diminui; desassossego, gemidos; às 8 horas e 35 minutos, urinou.
- Às 9 horas e 10 minutos, urina novamente e para de gemer; às 9 horas e 15 minutos, dorme profundamente.
- Às 10 horas, tentam lhe administrar uma infusão de guaco em dose de três colheres mais uma de água de Luce(4), que recusa beber, mas toma a infusão simples; cessa o corrimento sanguíneo no nariz; pulso a 108, regular; nota-se abatimento das elevações tuberculosas em ambos os braços e na face, estes apresentando rubor erisipelatoso; às 10 horas e 20 minutos, urina cerca de duas onças (28,41 ml = 1 onça) com aparência normal; fica mais sossegado, dorme alguns instantes tranquilamente e sem gemidos; às 10 horas e 40 minutos, dores do peito diminuídas e manifestam-se outras nas pernas e pés; pulso a 108, regular; sentimento de sede; senta-se para beber água, que engole com facilidade.
- Às 11 horas, toma quatro colheres de infusão forte de guaco; às 11 horas e 45 minutos, emissão de urina muito corada; bebe água em colheres com facilidade; pulso a 119. O braço e a mão mordida estão muito inflamados e sente muita dor; inquietação.
- À meia-noite, sono sossegado, interrompido por arrotos; pulso a 112; nova emissão de urina; aos 30 minutos após a meia-noite, fica inquieto e grita; invoca a Deus, pede confissão; recusa remédio; aos 40 minutos, nova emissão de urina; pulso a 116; sente muito calor nas pernas, pede coberta.
- À 1 hora, toma medicamento; pede que lhe retirem a coberta; torna a urinar e fica sossegado; à 1 hora e 15 minutos, nova emissão de urina; pulso a 100; à 1 hora e 50 minutos, toma infusão.
- Às 2 horas, bebe três colheres de água; senta-se na cama; todas as vezes que bebe água fica inquieto e grita; às 2 horas e 10 minutos, nova emissão de urina; às 2 horas e 30 minutos, toma remédio e sossega.
- Às 3 horas, torna a urinar; o lábio inferior, que estava muito úmido e inflamado, retoma seu estado natural, cessa a salivação; à 3 horas e 35 minutos, nova emissão de urina, notando-se que a quantidade é sempre em torno de 2 a 3 onças; sossego; às 3 horas e 45 minutos, toma medicação; pulso a 110; movimentos involuntários no dedo polegar da mão direita e perna esquerda.
- Às 4 horas, emissão de urina; às 4 horas e 45 minutos, toma uma colher de remédio; pulso a 100.
- Às 5 horas, emissão de urina, que se repete às 5 horas e 30 minutos, repete que está muito aflito; pulso a 100.
- Às 6 horas, pulso a 100; respiração livre; gemidos fracos; às 6 e 10 minutos, emissão de urina.
- Às 9 horas e 45 minutos, prostração; movimentos convulsivos da mandíbula e extremidades inferiores; urina sanguinolenta.
- Às 10 horas, pulso acelerado, desaparecendo por largos intervalos; aumento de movimentos convulsivos; diminuição do inchaço dos membros e da vermelhidão da pele; deglutição extremamente difícil e respiração débil; aplicação de dois vesicatórios nas coxas; aplica-se uma infusão de guaco; às 10 horas e 50 minutos, diminuição dos movimentos convulsivos; administra-se um clister de aguardente; às 10 horas e 55 minutos, cessam as convulsões.
- Às 11 horas, permanece com o estado inalterado, dá-lhe uma onça de óleo de lagarto, que engole com dificuldade; morte às 11 horas e 30 minutos.
Marianno durou 24 horas, após a mordida.
Às 10 horas da manhã, 11 horas depois da morte, vimos o cadáver na Misericórdia (Santa Casa). Estava inchado, muito volumoso, coberto de manchas roxas e escurecidas; extremamente fétido, tão difícil de suportar o cheiro que não foi possível fazer a autópsia.”
Jornal do Commercio, 20.09.1838.
DEPOIS DE TUDO
“Reflexões sobre a experiência, pelo doutor De Simoni (5) — […] devemos nos convencer de que a observação foi o grande móvel de se ter generalizado, em alguns países, a opinião sobre a possibilidade da cura da morfeia por meio do veneno de certas serpentes. Agora, se submetermos essa crença popular à explicação dos conhecimentos médicos, veremos que a ciência poderia sancionar a possibilidade da cura por esse meio. […] Essas ideias têm se espalhado nesses últimos tempos, com as publicidades que se têm dado a alguns desses fatos, tendo chegado ao conhecimento de pessoas afetadas do mal de Lázaro ou de seus parentes, de modo a desejarem que experiência análoga se fizesse em doentes mais corajosos. […]
As coisas estavam nesse ponto, quando o senhor Santos […] cheio de um sagrado amor pelo progresso da ciência e tendo em vista o infinito bem que faria à humanidade, ao descobrir a cura da morfeia, […] praticou a experiência na sua própria casa. […]
Do exposto, se deduz claramente que o senhor Santos, pelo seu ato, merece mil encômios pois prestou um grande serviço à ciência […] Sempre foi seu intuito afastar os doentes dos curandeiros e, caso houvesse algum procedimento, que fosse o mais medicamente possível.” — Revista Médica Fluminense [volume IV, 1838]: conforme transcrição do doutor Maia.
Por Eduardo de Paula
Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella
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(1) MAIA, Emílio Joaquim da Silva – (Salvador, Bahia, *08.09.1808 / Rio de Janeiro, †21.11.1859).
(2) REIS, Jacintho Rodrigues Pereira – (Cidade ?, Minas Gerais, *1768 / Rio de Janeiro, †13.03.1872).
(3) Facultativo – Quem é formado em faculdade de ensino superior. / O senhor Santos não teve sua identidade completa revelada, nem sua verdadeira habilitação profissional.
(4) Água de Luce – Licor leitoso, volátil, muito penetrante, composto de sal amoníaco e óleo de copal.
(5) DE SIMONI, Luiz Vicente – (Gênova, Itália, *24.02.1792 / Rio de Janeiro, †10.09.1881).